quinta-feira, 19 de maio de 2011

DESABAFO

O Desabafo de Uma Professora do Estado

Há muito tempo não via algo tão impactante sobre a realidade da rede pública estadual de ensino, quanto o depoimento da professora Amanda Gurgel, durante audiência pública da Assembleia Legislativa sobre a situação da educação no Rio Grande do Norte. O depoimento foi tão verdadeiro, inteligente, duro e ao mesmo tempo educado, que merece reprodução na íntegra desse espaço. Para você que não tem Internet para ver o vídeo que postei no meu blog (www.pedrocarlos.com), passo a reproduzir aqui a fala, ipsis literis. Vale a pena a leitura e a reflexão: “Bom dia todas e todos. Eu, durante cada fala aqui (referência às autoridades que se pronunciaram antes), pensava em como organizar a minha fala. Porque são tantas questões a serem colocada e tantas angústias do dia-a-dia de quem está em sala de aula, de quem está em escola...

Números

“...eu queria pelo menos conseguir sintetizar minimamente essas angústias... Como as pessoas apresentaram muitos números e como sempre colocaram que os números são irrefutáveis, eu gostaria também de apresentar um número para iniciar a minha fala, que é um número composto por três algarismos apenas, bem diferente dos outros números que são apresentados aqui com tantos algarismos; que é o número do meu salário: um 9, um 3 e um 0. É o meu salário base: R$ 930.

Pergunta

“E aí eu gostaria de fazer uma pergunta a todas e todos que estão aqui sem nível superior e especialização — mas também só respondam se não ficarem constrangidos, obviamente — se vocês conseguiriam sobreviver ou manter o padrão de vida que vocês mantêm com esse salário? (pequena pausa)... Não conseguiriam! Certamente esse salário não é suficiente para pagar nem a indumentária que os senhores e as senhoras utilizam para poder frequentar essa casa aqui.

Sala

“A minha fala não poderia partir de um ponto diferente desse porque só quem está em sala de aula, só quem está pegando três ônibus por dia para poder chegar ao seu local de trabalho — ônibus precário, inclusive — é quem pode falar com propriedade sobre isso. Fora isso, qualquer colocação que seja feita aqui, qualquer consideração é apenas para mascarar uma verdade que é visível a todo mundo, que é o fato de que em nenhum governo, em nenhum momento que nós tivemos no nosso Estado, na nossa cidade, no nosso país, a Educação foi uma prioridade.

Preocupação

“Então me preocupa muitíssimo a maioria das falas aqui, inclusive da secretária Betânia Ramalho, com todo respeito, que é: não vamos falar da situação precária porque todo mundo já sabe. Como assim não vamos falar da situação precária? Gente, nós estamos banalizando isso daí? Estamos aceitando a condição precária da educação como uma fatalidade? Estão me colocando na sala de aula com um giz e um quadro para salvar o Brasil, é isso? Salas de aula superlotadas, com os alunos entrando a cada momento com uma carteira nas cabeças porque não têm carteiras na sala... Não tenho condições. Muito menos com o salário que eu recebo.

Imediatismo

“A secretária disse ainda que não podemos ser imediatistas, ver apenas a condição imediata, precisamos pensar a longo prazo. Mas, a minha necessidade de alimentação é imediata, a minha necessidade de transporte é imediata. A necessidade de Jéssica (referência à aluna que falou antes dela) de ter uma educação de qualidade é imediata.

Concepção

“Eu gostaria de pedir aos senhores que se libertem dessa concepção errônea, extremamente equivocada — isso eu digo com propriedade porque eu estou lá, com propriedade maior até do que os grandes estudiosos— parem de associar qualidade de educação com professor dentro de sala de aula. Parem de associar isso daí porque não tem como você ter qualidade em educação com professores três horários em sala de aula, porque é assim que os professores multiplicam os R$ 930. 930 de manhã, 930 à tarde e 930 à noite, para poder sobreviver. Não é para andar de bolsa de marca nem para usar perfume francês. É para ter condição de pagar a alimentação de seus filhos. É para ter a condição de pagar a prestação de um carro, que muitas vezes eles compram para poder se locomover mais rapidamente entre uma escola e outra e que eles precisam escolher o dia em que vão andar de carro porque não tem condição de comprar o combustível.

Constrangimento

“A realidade, o cenário da educação do RN hoje é esse. E eu não me sinto constrangida em apresentar o meu contracheque, nem a aluno nem a professor nem a nenhum dos senhores aqui. Porque eu penso que o constrangimento deveria vir de vocês. Sinto muito, eu lamento. Mas deveriam todos estar constrangidos. Entra governo e sai governo...

Paciência

“Eu peço desculpas a você mais uma vez, Betânia, mas não tem novidade na sua fala. Sempre o que se solicita da gente é paciência, é tolerância. E eu tenho colegas que estão aguardando pacientemente há 15 anos, há 20 anos, por uma promoção horizontal. Professores que morrem e não recebem uma promoção. Então, eu quero pedir à secretária, paciência também. Porque nós não aguentamos mais esse discurso. O que nós queremos é objetividade.

Proposta

“Como é que é? Queremos sair desse impasse, queremos. Mas como? Sem nenhuma proposta, de mãos abanando? Para a gente voltar mais uma vez desmoralizado para a sala de aula e o aluno dizer: professora, a gente ficou aqui sem ter aula e só isso? Vocês receberam R$ 20, R$ 30. Eles dão risada.

Respeito

“Pedimos ainda, secretária, respeito, para que a senhora não vá mais à mídia dizer assim: ‘pedimos flexibilidade’. Como se nós fôssemos os responsáveis pelo caos quando na verdade só se apresenta à sociedade quando nós estamos em greve, mas que está lá todos os dias, dentro da sala de aula, dentro das escolas, em todos os lugares. Então, respeito. Não se refira à nossa categoria dessa forma.

Categoria

“Nem se refira apenas como se fosse a direção do Sinte que está querendo fazer essa greve. Não é, não. É 90% da categoria no Estado inteiro. No interior e aqui na capital. Pedimos aos deputados, apoio. Estejam mais presentes, participem ali. Vão à nossa assembleia, procurem ouvir esses trabalhadores, procurem ouvir a nossa realidade.

Promotoria

“Pedir à promotoria que esteja com uma fiscalização efetiva. Que não seja para dizer que professor não pode comer desse cuscuz, porque é um cuscuz alegado o que a gente come, o da merenda. Porque a promotoria está ali para dizer que a merenda é do aluno, não é do professor. É assim que funciona. Diga-se de passagem, nós não temos recurso para estarmos nos alimentando fora de casa. São muito mais questões mais complexas que poderiam ser colocadas aqui, mas infelizmente o tempo é curto e eu gostaria de solicitar isso em nome dos meus colegas que comem um cuscuz alegado, em nome dos meus colegas que pegam três ônibus para chegar ao seu local de trabalho, em nome de Jéssica que está sem aulas neste momento, mas que fica sem aulas por muitos outros motivos, por falta de professor, por falta de merenda. Era isso que eu queria dizer”.

Edição número 1.600 – Ano VI – Mossoró (RN), 18 de maio de 2011.

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